domingo, 4 de novembro de 2007

Mariza & Amália


Duas notas prévias: Em primeiro lugar, e conforme já aqui amiúde o disse, não gosto de fado. Em segundo lugar, o fado não é genuinamente português, sendo um cruzamento de influências do norte de África, e cultura muçulmana por cá deixada, com laivos de música da andaluzia. Logo, o fado não é a música étnica portuguesa por excelência, lugar que está reservado aos inenarráveis ranchos folclóricos que, esses sim, interpretam canções geneticamente reportadas ao povo das mais recônditas aldeias do interior. Quando muito, o fado é a expressão musical do bas-fond da baixa lisboeta dos anos 30 até 1974.


Isto em consideração, passemos ao cerne do tema proposto. Mariza é um portento, um talento inigualável que conjuga uma imagem extremamente bem conseguida com um fraseado notável e uma interpetação cheia, inebriante. Como era expectável, a sua presença no show de David Letterman foi de ir às lágrimas (literalmente, no caso do próprio Letterman), intuito conseguido com uma perfeitíssima interpretação de "Ó gente da minha terra". O que Mariza tem feito já ultrapassou em muito os meros prémios, que entretanto não cessam de chegar. Na sua esgotadíssima digressão norte-americana teve o seu palco do concerto no "Disney Concert Hall" desenhado por Frank Gehry, que para tal criou a "Mariza's Tavern", recriando as velhinhas tabernas de Alfama onde o fado se fez fado. Mariza, mais do que o fado, tem um lugar cativo - e premiado - na cena world music, sendo um valor pacífico neste concreto segmento, o mais puro e verdadeiro de todos. O fado, por si só e pelas razões que supra expendi, não teria.


Inevitável e sempre presente é a comparação com Amália. Ora, há um mundo de diferenças. Lugar comum é dizer-se que Amália levou o fado aos quatro cantos do mundo. É uma meia verdade. Ao tempo em que cantava Amália - e, note-se, muito bem cantava - a música portuguesa era, tão só e apenas, o fado. Os cantautores (Zeca, Sérgio Godinho e quejandos) viriam mais tarde e a música popular ligeira portuguesa viria muito mais tarde. Amália encheu Olympia's e outros que tais, noites sem conta, de portugueses. As largas comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo tinham no fado, do qual era Amália a mais visível face, o único ponto de ligação com a terra. Assim se compreende que todo e qualquer concerto de Amália, fosse um acontecimento, para além de musical, cívico e etnológico.


A distância temporal que separa as duas não permite uma justa comparação, nem ela tem que ser feita, o que, aliás seria a melhor solução. Mas o que também não pode permitir é a ostensiva e reiterada subjugação de Mariza ao facto de ter surgido depois do apogeu de Amália - a quem haverá sempre que reconhecer inolvidável e basilar contributo na estatuição da dimensão nacional do fado - como se de uma mera seguidora se tratasse. Fica a esperança de que Mariza faça pela implantação internacional do fado o mesmo que Amália fez a nível nacional. Amália levou o fado para além das tascas de Alfama, Mariza assumiu o ónus de o levar para além de Portugal. Até ver, muito além das expectativas.


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